quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

RIO DE JANEIRO


Todo dia ao entardecer, como que em um ritual, Alice pega seu livro de brochura, afinal ela é daquelas que está sempre lendo um livro, agarra-o entre os dedos pálidos e o segura firme contra o colo, como se sua vida dependesse apenas, de um poema.  Antes de sair, checa a fechadura, a chacoalhar por três vezes a maçaneta e devaneia por certo tempo, fitando seus olhos pelo espelho do elevador, como se a cada dia esperasse por ver refletida outra imagem, outro alguém, avesso ao que realmente via. Há tempos ela deixava de se reconhecer. Mas que importância tinha isso agora? Aperta com o polegar, a têmpora esquerda, em um princípio de enxaqueca.  Segura junto a si, a pequena bolsa de couro, a tiracolo e cumprimenta o porteiro, sempre tão cordial com ela, que por vezes ela desconfiava se havia algum interesse escondido por detrás daquele olhar.

“Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
-Em que espelho ficou perdida
a minha face?”.

Era como se o seu tempo se esvaísse na ampulheta da vida, tão rápido, e como se tão logo, suas horas fossem virando poeira. Cruza as ruas movimentadas de Ipanema, sem se importar com a confusão de carros e pessoas que atravessam seu caminho, imersa em seu próprio turbilhão de pensamento.

Tira sua sandálias, os pés tocam a areia morna. Pisa em duas ou três conchinhas, desvia de um grupo de turistas sentados na orla da praia. Caminha devagar, o vento brincando pela saia de algodão, até onde, habitualmente, se senta. Recosta-se e então, por fim, sente-se bem, naquele espaço, já tão seu. Sente-se tocada pela brisa do mar, e abraçada pelo barulho das ondas. Aninhada entre as pedras, sente-se segura, como se livre de todo mal, que pudesse lhe sobrevir. Amém! Uma pena, que logo, a maresia traz também, o medo.

Alice, o seu destino foi traçado no antes ou no agora? Quem se destina a desenhar as curvas da vida,  quem se atreve a tentar? O mundo é daqueles que tem coragem cega ou dos que tem cautela muda? Será que sofre mais quem cala ou quem impulsivamente se atira? Alice precipita-se num precipício sempre que pensa em todos os traumas. Querida, o tempo passa, já dizia a sua mãe. Os anos somem, a boca amarga e o medo cresce. Será que envelhecer é temer cada vez mais a vida?

“Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.
Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces ? - me perguntarão. -
Por não ter palavras, por não ter imagem.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.
Que procuras ?
Tudo.
Que desejas ?
Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação ...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?
Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão !
Estandarte triste de uma estranha guerra ... )
Quero solidão.”

Com o sol ainda poente, ela se levanta chacoalhando a areia dos quadris. O grupo de turistas aplaude em pé, o pôr do sol, extasiados. Uma onda tímida lambe os pés de Alice. Por impulso, ela atira a bolsa e o livro na areia. Repousa o olhar no horizonte, no ponto ínfimo em que o mar beija o céu, e vai em direção ao infinito. A água, fria, arremessa-se violentamente contra seu corpo esguio. As pernas tremulam, mas ela adentra. Contra o arrepio que percorre seu corpo, mergulha. As gotas pesadas caem de seus cabelos, escorrem pelo dorso. Aperta com o polegar, a têmpora esquerda. Já não há mais nenhum sinal da enxaqueca, que lhe pontuava a cabeça. A mente agora, já anestesiada. Aprofunda-se cada vez mais na imensidão do mar, e naquele momento, estava completa. A terra é redonda, como uma laranja, pensa Alice.

“Pus o meu sonho num navio 
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas”.


Crédito da foto e colaboração criativa de Gabriela Wisneski.
Poemas:
MEIRELLES, Cecília. Retrato. Antologia Poética.  Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2001.p.18.
MEIRELLES, Cecília. Despedida. Antologia Poética.  Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2001.p.53.
MEIRELLES, Cecília. Canção. Antologia Poética.  Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2001.p.19.

Nenhum comentário:

Postar um comentário