quinta-feira, 23 de outubro de 2014

PARIS




Ele segurou, firmemente, os dedos de Isobelle, entrelaçando-os entre os seus. Beijou-lhe a mão.

- Casaremos, no entardecer de uma tarde morna de setembro. E o pequenino virá no próximo outono.

Isobelle riu, com aquele riso escarnado que quase sempre lhe despia a alma, como se não fosse ela mesma a vestir-se de sua própria pele.

-Não haverão de nascerem filhos, não deste ventre. Nem véus e altares. O amor é mais que isso, Sebastian. Faremos um pacto! Ela saltou aos ares, como quem tem uma grande idéia: O amor há de ser essencial, esse nosso amor. Mas a ele, não atemos nós. E continuou: - O amor não se aprisona. Amor e liberdade não são excludentes. 

E ela tocou, com os dedos leves, a Pont des Arts, onde a lenda parisiense diz que os casais apaixonados devem prender seus cadeados à ponte e atirarem suas chaves ao Rio Sena, com a expectativa mágico-poética de ficarem juntos para sempre. 

Sebastian conhecera Isobelle em um tarde chuvosa na Rue Vielle du Temple. Ele procurava se abrigar da chuva no eirado do Breizh Café, quando ela esbarrou-se nele, ensopando todos os seus livros. Houveram pedidos de desculpa, e ele sugeriu que adentrassem para um café. Quando a chuva cessou, eles não se levantaram da mesa. Jantaram juntos mais tarde naquela noite, e nunca mais foram estranhos um ao outro.

Pelas tardes quentes, faziam longos passeios, se deitavam no gramado da Torre Eiffel e recitavam poesias que Isobelle gostava de escrever, mas sempre corava-se quando as dividia com Sebastian. Pelas noites amenas, transbordavam-se em amores. Em uma dessas noites, embebidos de vinho, Sebastian confessou que a amava. Isobelle tocou-lhe os lábios, como se quisesse colher às palavras por entre os dedos, antes que elas se dissipassem, e o beijou profundamente. Deitou-lhe a cabeça em seu dorso nu, e adormeceram.

Isobelle era um tipo raro de fêmea de aura incomum. O viço que adorava Isobelle, quase sempre era reprimido por certo tipo de apatia, como se carregasse alguma mácula que lhe apoderava o ser, como um fardo, em que, por vezes era leve como pena, mas por vezes, lhe dobrava os joelhos, forçando-a a se curvar em algum abismo dentro de si mesma. Sebastian desconfiava que, talvez, Isobelle vivia apenas pela obrigação de viver. Ela era maresia e arrebentação, era luz e sombra.

Isobelle viveu na cidade de Lyon, com sua mãe, uma atriz amadora, que faleceu pouco antes do 25º aniversário dela, pelo constante abuso de álcool e uma vida desregrada que levava desde sua viuvez. Isobelle, filha única, recolheu as poucas coisas que tinha numa pequena mala, tomou o trem na estação e chorou por toda a viagem. Quando chegou à Paris, na Gare Du Nord, soube que nunca mais derrubaria uma lágrima sequer pela mãe. 

Trabalhava em um pequeno bistrô, esgueirando-se por entre clientes agitados, com pilhas de pratos a servir. Matriculou-se no curso de fotografia, mas logo desistiu. Ela sabia que só ela mesma seria capaz de dar algum sentido a sua vida, mas havia tantos obstáculos e distrações. Talvez devesse se contentar em continuar a lavar pratos. Seria mais honesto consigo mesma. 

Sebastian nasceu em uma família tradicional de advogados, mas rompeu contato com seus pais quando decidiu se tornar jornalista. Empregou-se em um pequeno jornal, mas o que lhe fora oferecido foi um trabalho na seção de obituários, com todos aqueles comunicados póstumos de gente que ele nunca conhecera em vida. Quando voltava ao seu apartamento a noite, buscava refúgio nos braços de Isobelle, quando dividia com ela seus anseios de logo a sorte lhe sorrir com uma posição melhor no jornal. 

Em uma tarde qualquer, sentados em um banco de pedra ao lado da ala sul do Louvre, Isobelle recostava sua cabeça em seus ombros, e penosamente, folheava um livro, desinteressada. Sebastian brincava com seus cachos dourados, aqueles longos cabelos que emolduravam seu rosto fino, e acariciava-lhe os ombros com o polegar. Ela era linda, mas parecia não saber disso. Sempre escondida atrás de seus grandes óculos de armação e jeans surrados.

-Podíamos viajar o mundo juntos, sabe. Você e eu. Tomar café em Viena, ver o pôr do sol no Taj Mahal, beber vinho barato em Budapeste.

-Viajar é fugir da realidade, Sebastian. 

-Você é minha realidade, Isobelle. E eu quero fugir com você.

Continuaram ainda recostados. Ele a pensar em longas viagens de trem, e ela voltou-se a seu livro, embora o pensamento estivesse longe. Quando fim de tarde, e o sol já se mostrava preguiçoso, cruzaram de mãos dadas o Jardins de Tuileries. 

Sebastian era um homem cheio de sonhos. De si, emanava a certeza de que haveria de persistir na caminhada por aquilo que julgava coerente. Era um homem que acreditava que a felicidade residia na constância dos bons sentimentos, e se por vezes, sentia-se desencorajado, sabia que sua determinação transporia qualquer obstáculo. Alguns amigos o chamavam de tolo, mas ele não se importava. Gostava de ser mais um sonhador na Cidade-Luz.

E foi na noite de 18 de julho de 1998, que Sebastian tivera a certeza de que a satisfação residia no esforço. Naquela tarde, o editor-chefe lhe propôs que assumisse o trabalho de repórter. Por fim, ele estaria salvo daquele pequeno cubículo atulhado de papéis todos os dias. Dobrou a esquina, a passos rápidos, para o pequeno apartamento de Isobelle, na 19ª arrondissement, eufórico para dividir a novidade com ela. Comprara o vinho mais caro da bodega, e naquela noite pretendia tomá-la como sua noiva. Mesmo que ela refutasse sua proposta, Sebastian pretendia convencê-la. Para os diabos com aquela história de que amor não se aprisiona. O amor dos dois não haveria de ser efêmero.

Isobelle não atendeu as insistentes batidas de Sebastian à sua porta naquela noite. Dentro do apartamento, já não havia mais sonhos, nem promessas. Desistira de sua vida e jazia morta, vestida de branco, pendurada pelo lustre. 

O nome de Isobelle Bettencourt saiu no obituário da tarde seguinte.



Nenhum comentário:

Postar um comentário