Fazia um calor dos diabos naquela tarde de domingo na terra do Senhor do Bonfim. O ar, inebriado de maresia, acariciava os pulmões de Cecília, sentada àquela mesa, naquela esquina de paralelepípedos.
Ela pediu uma dose de Gim, enquanto ele folheava atento o cardápio. Seus dedos nodosos, apontando para cada prato e bradando ao garçom, de modo rude, os preços abusivos que praticavam por ali. Ordenou-lhe que o servisse um prato de frutos do mar, camarões e lagosta.
- Para mim só a bebida. – disse ela com a voz enrouquecida que lhe soou um tanto quanto fraca aos seus ouvidos, mas se fazendo ser entendida pelo garçom.
Bebericou seu Gim, que desceu seco na garganta, amargo. Ele incitou, empertigado, um discurso sobre a economia do país, esperando por alguns argumentos dela que não vieram à conversa. Mais um gole e ela amaldiçoou o homem por insistir naquele debate unilateral. Tantas coisas que poderiam ser ditas, mas aquele homem horrendo continuava a falar coisas que só um burguês aguardando por sua lagosta ousaria pronunciar. Pensou em cravar-lhe um garfo no pescoço, levantar-se e ir comer um acarajé. Talvez ninguém fosse notar.
Há tempos se sentia atada, como que por nós invisíveis àquele homem, que só lhe causava ojeriza. O garçom entregou a ele seu prato ostensivo, transbordando em mariscos, e o homem agarrou algumas ostras, engolindo-as rápido, e se serviu de mais alguns camarões. Ele continuava seu monólogo, ao qual Cecília intercalava com algumas interjeições vazias, demonstrando um ínfimo interesse, rezando aos orixás que o homem a sua frente se engasgasse com aquela carne branca de lagosta.
- Para mim, nada – repetiu ao garçom que insistia em lhe ofertar algumas opções do cardápio.
Pela rua, descia uma mulata empoleirada em saltos de madeira coloridos, cigarro no bico. Cecília a admirou com olhos atentos, o braço repleto de largas pulseiras que tilintavam ao balanço de seus quadris enquanto caminhava ladeira abaixo pelo Pelourinho, com passos duros e cabeça erguida. Parecia uma mulher decidida, daquelas que se levantam da cama e metem a cara na vida, sem temores, determinada.
Na mesa, o homem ainda falava com a boca cheia de lagosta, lambendo os beiços e os polegares, enquanto ela se deleitava com a imagem daquela mulher descendo as ladeiras. Lembrou-se de uma música de Caymmi, “Bahia de São Salvador, a terra do branco mulato, do preto doutor”. Cantarolou baixinho o refrão, respirou o ar de maresia, e pediu mais uma dose de Gim ao garçom de sorriso aberto que retornara a mesa para retirar os pratos.
Ele, limpava a boca com os guardanapos encardidos, aquela boca escancarada em um sorriso torpe, entojado de comida, e já exalando aquele cheiro etílico que lhe embrulhava o estômago. Palitava os dentes, e contava qualquer história que Cecília fingia ouvir, com acenos leves de cabeça, como quem compartilhasse dos mesmos pensamentos.
-É uma cidade bonita, sim. Disse ela, forçando um sorriso, que passou despercebido ao homem.
Cecília distraiu-se com uma mancha escura e pequenina em seu antebraço. Se ateu à textura, tamanho e coloração daquilo que não houvera percebido e que se instalara em seu corpo. Assim que voltasse de viagem deveria ir ao médico e verificar aquilo, pensou. O homem sinalizou de maneira autoritária, e foi rapidamente atendido pelo garçom que recolheu as notas sobre a mesa e despediu-se do casal com o mesmo sorriso aberto com o qual os recebeu. Talvez se Cecília se esforçasse também se lembraria de como era sorrir, sorriso verdadeiro e não apenas de maneira cordial, como fora treinada a expressar por tanto tempo.
Caminharam, ele um pouco a frente, reclamando do sol que aquela altura lhe queimava a cabeça, já com cabelos esparsos. E haveria tantas outras horas, tantos outros dias, tanta vida a ser desperdiçada ainda do lado daquele homem. Assim que retornasse, definitivamente, deveria checar aquela mancha no antebraço. Anotou mentalmente a informação que haveria de se lembrar.
Rosa, a mulata, descia a ladeira como fazia habitualmente, com seus saltos altos de madeira. Não se sentia espetacularmente feliz naquele dia. De fato, havia tempo que não se sentia dessa forma. No alto de seus tamancos, pensava que havia tantos sonhos, tanto a se realizar ainda em sua vida, mas se sentia perdida. No restaurante de esquina, observou o casal sentado à mesa. Gostaria de ter alguma companhia também naquela tarde de domingo. Invejou a mulher, elegantemente trajada, que segurava sua bebida, atenta ao que o homem lhe falava.
Com passos firmes dobrou a esquina, desejando que em algum dia também tivesse a mesma sorte. Talvez se não tivesse tantos temores, talvez se fosse determinada.
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